domingo, 24 de outubro de 2010

Encruzilhada
Etapa intermediária, o ensino médio tem representado o estágio em que a educação deixa muitos alunos para trás. Reformulá-lo tem sido um desafio para vários países
 
Marta Avancini


Tradicionalmente, o ensino médio é uma espécie de filho do meio da educação brasileira, aquele que fica "esquecido" e "pressionado" entre o irmão mais velho e o mais novo. Sem uma identidade clara, com um currículo engessado e excessivamente acadêmico, além de sofrer com a falta de professores, acaba não preparando os alunos adequadamente para avançar nos estudos nem para ingressar no mercado de trabalho.

As deficiências se traduzem no fraco resultado do secundário no Ideb de 2009, que revelou a estagnação do desempenho dos alunos no país e piora em sete estados. Outro sintoma da crise é a falta de interesse dos adolescentes pela escola. Apenas a metade dos jovens da faixa etária adequada, de 15 a 17 anos, frequenta o ensino médio. E o que é pior: 2 milhões de jovens nessa faixa etária estão fora da escola.

Os problemas enfrentados pelo Brasil não são exclusividade nossa - ainda que aqui sejam mais acentuados.  Vários países têm promovido reformas e ajustes nos seus sistemas de ensino com a finalidade de assegurar, ao maior número de estudantes possível, acesso a uma formação de melhor qualidade e significativa para o mundo do trabalho e a vida na sociedade do século 21.

E como o conhecimento está na ordem do dia e o ensino médio se tornou, em boa parte do planeta, o pré-requisito para obter um emprego, o desafio é formatar uma estrutura e um currículo que permitam aos jovens desenvolver qualificações para o trabalho e sua capacidade de aprender ao longo da vida.

Por isso, a diversificação da oferta, a criação de formas de equivalência e transição entre os diferentes tipos de curso dão o tom dos sistemas de ensino de boa parte dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Na Finlândia e nos Estados Unidos, a flexibilidade é o eixo. O país nórdico possui uma das estruturas mais flexíveis que se conhece: não existem séries e o currículo é organizado em módulos semestrais. Para se graduar, basta que o aluno acumule determinado número de créditos.

Nos Estados Unidos, o sistema educacional foi construído de modo a proporcionar o acesso à escola comum a todos os adolescentes, sem filtros e demarcações prévias - como ocorre na Alemanha e Inglaterra, onde somente os mais bem avaliados podem fazer os cursos secundários que se destinam aos futuros ingressantes nas universidades.

Desse modo, as high schools norte-americanas são, na verdade, três escolas no mesmo prédio, como explica o professor Cândido Alberto Gomes, da Universidade Católica de Brasília (UCB), no artigo "Ensino secundário nos Estados Unidos - Novos problemas e novas soluções": a escola acadêmica (para os alunos de melhor aproveitamento), a vocacional (preparação para o trabalho) e a geral (para os de menor aproveitamento). Em cada ramo, existem subdivisões por turmas, segundo o aproveitamento do aluno.

A diversificação, diz João Batista de Oliveira Araújo, presidente do Instituto Alfa e Beto, é a norma (não a exceção) no ensino médio nos países mais avançados. "Há diversificação dentro das escolas e entre as escolas."  Nos países da OCDE, ela se dá por meio da oferta de um ensino médio acadêmico e um ensino profissionalizante. No ramo acadêmico, costuma haver uma divisão entre as grandes áreas do conhecimento; já o profissionalizante é organizado por profissões ou por áreas - tendência esta que vem ganhando espaço.

Mas, como aponta a superintendente executiva do Instituto Unibanco, Wanda Engel, os tradicionais modelos europeu e norte-americano não se ajustam mais às demandas da sociedade contemporânea. O primeiro (ou ao menos a direção que prevalece em muitos países europeus) é criticado por ser pouco democrático e excessivamente seletivo, na medida em que "predetermina na adolescência o que a pessoa será posteriormente". Na Holanda, por exemplo, define-se aos 12 anos de idade se o aluno vai para o ensino secundário vocacional, geral ou pré-universitário.

Já a falha do modelo norte-americano é agregar pouco à formação do jovem. "A flexibilidade é grande, capaz de atender a uma demanda muito variada, mas o aluno sai com pouca cultura geral", analisa Wanda.

Uso x acúmulo de informação
Num mundo competitivo, de mudanças aceleradas em que os diplomas valem cada vez menos (porque mais e mais pessoas têm um nível maior de escolaridade), é essencial que a educação seja útil. "O aluno precisa ter uma base bem ampla de educação geral não tanto para saber, por exemplo, leis da física, mas para aprender a conhecer, aprender a pesquisar e estar aberto ao novo", analisa Gomes, da UCB. O recado é claro: é mais importante saber usar a informação do que acumulá-la.

Nesse novo cenário, a palavra-chave é convergência. Convergência entre a educação geral e a profissionalizante, entre o ensino secundário e o superior, entre a escola e o mercado de trabalho/demandas do mundo contemporâneo. Isso para que a escola seja capaz de incorporar e manter os jovens, ofertando a eles uma formação que faça sentido.

O programa TechPrep, dos Estados Unidos, é um exemplo das estratégias adotadas para tentar tornar o ensino médio mais significativo para o aluno e a sociedade.  Presente em quase metade das escolas secundárias, o TechPrep é um programa de participação voluntária, conduzido durante quatro anos de ensino secundário + dois de ensino superior. Uma de suas principais vantagens, explica Gomes, é que, ao aderir ao TechPrep, o jovem é induzido a formular, por si próprio, seus objetivos de carreira profissional.

Outro pilar do programa é o estudo contextualizado dos conteúdos da educação geral, os quais são trabalhados de maneira a explicitar as relações entre ciência e vida, ciência e tecnologia e teoria e prática - uma das chaves para tornar o ensino médio mais atraente e significativo para o jovem, nos termos de Wanda Engel, do Instituto Unibanco. "É importante que existam mecanismos que induzam à profissionalização não no sentido de aprendizagem de um ofício, mas que garantam aos jovens ferramentas para ingressar no mundo do trabalho."

As vantagens desse modelo são várias, pontua Gomes, da UCB: o progressivo envolvimento do aluno com o trabalho e a carreira, uma formação técnica aprofundada nos dois últimos anos, o ingresso num curso superior de caráter profissionalizante e com duração de dois anos e a obtenção de um diploma que habilita o jovem a avançar nos estudos.

Articulação com o mercado de trabalho
Também nos Estados Unidos, a Career Academies, nos dois últimos anos do secundário, permite que os alunos façam a opção por se matricular em um curso com um currículo organizado em torno do trabalho. A proposta inclui parcerias com o mercado laboral, para que os alunos tenham cursos práticos com duração de um ano.

Na Finlândia, os empresários, empregadores e educadores trabalharam juntos na construção do sistema de educação profissional em vigor atualmente, mais voltado para as necessidades dos adultos e das empresas do que o anterior. As qualificações são fundamentadas em competências, dividindo-se em profissionais (habilidades básicas), qualificações posteriores (atestando um trabalhador capacitado) e de especialista (domínio de habilidades complexas no
seu campo).

Já a Alemanha é conhecida pelo sistema dual, no qual existe uma profunda articulação entre a formação profissional e o mundo do trabalho, possibilitando até que o aluno estude num turno e trabalhe no outro.

Acadêmico + profissional
Na Alemanha e na Inglaterra, onde tradicionalmente a formação acadêmica não se mistura com a profissionalizante, está ocorrendo uma aproximação entre os dois campos. Isto porque, em decorrência das exigências do mercado de trabalho, o ensino profissionalizante está perdendo as características de um ensino aplicado, afirma Oliveira Araújo. Assim, o "viés acadêmico" passa a ser valorizado dentro da formação profissionalizante. 

"Em países como a Alemanha, o ensino profissionalizante não é visto como um ensino de segunda categoria. Há um rigor muito grande, semelhante ao do ensino acadêmico", diz ele. Além disso, nos países da OCDE em geral está aumentando a carga de conhecimentos conceituais e científicos que fundamentam as ocupações. "Cada vez mais, a capacidade de planejar, analisar e tomar decisões é valorizada, por isso não basta saber apenas manipular objetos. Há uma crescente preocupação em dar aos jovens a possibilidade de compreender a lógica de funcionamento do mundo do trabalho e das organizações", afirma.

Além disso, em locais como a Alemanha e a França, de forte tradição profissionalizante, o secundário vocacional está se estruturando, de maneira crescente, em "famílias de ocupação" em vez de se afunilar em uma profissão e em especializações. "Assim, o aluno pode se engajar em diferentes tipos de ocupação."

Já no ramo acadêmico, complementa Oliveira Araújo, a tendência nos países da OCDE é aproximar os conteúdos transmitidos na escola aos avanços científicos e às suas aplicações no mundo real. "Isso acarreta tanto um aumento da exigência da capacidade de abstração quanto maior preocupação com a aplicação prática do conhecimento."

A maneira como esta tendência é implementada varia de país para país, mas é possível dizer que ela costuma se traduzir em atividades que aproximam o mundo real e a escola. Por exemplo: valorização das atividades em grupo, trabalho voluntário, associativismo, simulações de processos decisórios de empresas etc.

Na Espanha, desde os anos 1990, a tendência é a de superar a divisão entre o ensino médio acadêmico e o profissional, bem como valorizar esse segmento. Por isso, passou a existir apenas um exame de ingresso no ensino secundário e o ensino acadêmico incorporou a chamada "formação profissional de base", por meio de disciplinas em que são trabalhadas as aptidões para o trabalho (por exemplo, tecnologia e economia) e oficinas práticas.

Mais recentemente, em 2007, o bachirellato (acadêmico) fortaleceu a formação em ciências para todos os alunos por meio da introdução de uma nova disciplina, ciências para o
mundo contemporâneo.

Mais qualidade, menos desigualdade
Acompanhando a tendência dos países do Hemisfério Norte, o Chile realizou uma reforma do ensino médio na década de 1990 com a finalidade de reduzir as desigualdades, melhorar a qualidade e tornar o currículo menos enciclopédico. Isso num contexto que lembra o Brasil de hoje, em que o ensino médio convencional não é atraente e o ensino profissionalizante está distante das práticas do mundo do trabalho.

O caminho adotado para superar esses problemas foi uma reforma curricular, construída a partir de um amplo processo de discussão com as escolas e profissionais da educação, que estabeleceu duas categorias - a formação geral e a formação diferenciada - tanto para a educação geral quanto para a profissionalizante. Desse modo, dilui-se a distinção rígida entre os ramos acadêmico e profissionalizante e se reforça o valor da educação em ambas as vias.

Vale destacar ainda o pano de fundo das reformas no Chile: aumento do financiamento por aluno (incluindo recursos públicos, privados e contribuições dos pais) e a implantação de um Estatuto Docente, que significou aumento de salário e a oferta de incentivos pautados por desempenho aos professores, entre outras políticas.

Embora as soluções variem e estejam necessariamente associadas ao contexto social, histórico e cultural de cada país, a experiência internacional mostra que não há mais espaço para um ensino médio dissociado do mundo e do trabalho, nos termos de Wanda Engel.  "O mundo mudou, está a caminho de um ensino de massa, vinculado à vida, à compreensão do mundo e às necessidades do trabalho e da cidadania", complementa Gomes, da UCB.

Essa ideia já está assimilada. Mas os desafios que a acompanham não são desprezíveis e abarcam desde a oferta de um ensino fundamental de qualidade para todos (a fim de que tenham condições de progredir nos estudos) até aceitar que há várias outras fontes de informação que concorrem com a escola e o professor, e que cabe a ambos revelarem-se suficientemente importantes para ajudar o aluno a transformar informação e saberes em conhecimento, além de mostrar-lhe o leque de opções, inclusive éticas, para utilizá-lo.



fonte: http://revistaeducacao.uol.com.br/textos.asp?codigo=12995

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