terça-feira, 2 de novembro de 2010

Novos caminhos
Escolas particulares que oferecem Educação de Jovens e Adultos (EJA) apostam em metodologias diferenciadas para evitar evasão
 
Beatriz Rey

Alunos aguardam o início da aula no colégio Santa Maria, na zona sul de São Paulo



O relógio marca nove horas da noite. Anália Pereira Lemos, conhecida por Naná, está sentada em um dos corredores do prédio da agência dos Correios na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo. Vestida com roupas de inverno, já que a temperatura beira os 16°C do lado de fora, Naná olha fixamente para um extintor, que está ao lado de uma sala adaptada para receber os alunos de Educação de Jovens e Adultos (EJA) do Ilha de Vera Cruz, projeto social ligado à Escola Vera Cruz, colégio paulistano de classe média alta. "Eu sei o E, o X, o T, o I, o N, o T, o O e o R, mas não sei juntar as letras", confidencia. Há dois anos, não conseguia identificar nenhuma letra. Baiana, 57 anos, até então nunca havia colocado os pés em uma sala de aula. Resolveu aprender a ler porque tem um sonho: tirar a carteira de motorista para ser guia turística em Florianópolis (SC). "Agora já sei falar todas as letras de qualquer placa que vejo na rua."

Naná é uma das 7.232 pessoas que frequentam aulas em instituições privadas de ensino de EJA no Estado de São Paulo. Eles representam pouco mais de 1% do total de 520.863 alunos atualmente matriculados nessa etapa. Os outros 99% estão nas redes estadual e municipal. Uma parte da oferta de vagas em redes particulares é feita de forma gratuita ou semigratuita por escolas de ensino regular, como o Vera Cruz e o Santa Maria, entre outros. Também há instituições desvinculadas das escolas, como a Microlins ou o Instituto Universal, que oferecem o supletivo. Maria Clara Di Pierro, professora da Feusp e especialista em EJA, afirma que há três tipos de atendimento realizado por escolas. Há instituições, como o Santa Maria e o Colégio Santa Cruz, que começaram a ofertar EJA na década de 70 ou 80. Elas atendem a todas as diretrizes curriculares exigidas pelo Conselho Nacional de Educação para os cursos de Educação Básica, além de seguir as regulamentações estabelecidas pelo Conselho Estadual de Educação de São Paulo (deliberação nº 82/2009). Assim, emitem diploma ao final do curso. "O curso é bastante parecido com a escola regular: há aulas de segunda a sexta, é um modelo seriado e disciplinar", explica.

Colégios como o Móbile e o Nossa Senhora das Graças (Gracinha), também em São Paulo, trazem um modelo mais recente de atendimento, cuja base é o voluntariado. Os professores são voluntários: um engenheiro pode lecionar matemática e um jornalista, língua portuguesa. Nesses casos, não há emissão de diploma - o curso prepara os alunos para prestar o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja). Segundo Maria Clara, o Ilha de Vera Cruz é a única escola dessa "nova geração" que emite diploma ao final do curso. "É um esquema singular. Há pedagogos que supervisionam os voluntários. Eles conseguem atender às exigências do CEE e desenhar um modelo mais flexível", diz.

Projetos
Ao ofertar EJA, o Vera Cruz tem dois objetivos: oferecer educação a um público que nunca estudou ou está sem estudar já há algum tempo e realizar a formação do trabalho voluntário. "A formação dos professores é feita tanto tecnicamente, para que eles sejam competentes em sala de aula, como no conceito de trabalho voluntário em si", explica Jussara Ferreira Paim, coordenadora do Ilha de Vera Cruz. Para selecionar os professores voluntários, a equipe prioriza quem tem licenciatura, mas também aceita profissionais de áreas correlatas às das disciplinas (engenheiros, jornalistas etc.). Todos passam por formação em serviço, que abrange metodologia e didática. Além disso, há a supervisão pedagógica de todos os voluntários. "Temos reuniões para falar das dificuldades encontradas e para dar encaminhamento quando percebemos que algo está se desviando da concepção da escola", explica.

Neste ano, há 154 alunos matriculados, distribuídos entre o primeiro ciclo (alfabetização) e o segundo ciclo (conteúdo equivalente ao segundo ciclo do ensino fundamental). As aulas acontecem de segunda a sexta. Em sua maioria, os alunos são migrantes ou de famílias oriundas do Norte e Nordeste, têm entre 30 e 40 anos e estão nos estratos inferiores quanto à renda familiar. O colégio atende desde pessoas com emprego fixo, que já possuem uma casa própria, até moradores de rua e albergados. "São adultos que geralmente passaram por história de fracasso na escola e no trabalho, e chegam aqui com a autoestima bem prejudicada", conta Jussara. Assim, os profissionais investem no que a escola chama de "formação para a autonomia": o objetivo é que, ao final do curso, o aluno consiga se valorizar.

Para que isso aconteça, a equipe do Ilha procurou uma metodologia que oferece um significado para o que o aluno está aprendendo. Muitas aulas são ministradas através de projetos, que trabalham não somente o conteúdo, mas também as competências. Um exemplo é a revista literária "Vozes do Ilha", produzida inteiramente pelos estudantes. "Eles pesquisam coisas de seu interesse e escrevem sobre elas. Enquanto isso, os professores trabalham questões gramaticais e a coerência textual, por exemplo. Quando a revista é impressa, eles se enxergam como autores", coloca Jussara, fazendo referência à questão da autonomia.

Outro projeto levado a cabo pelo colégio é o que envolve geometria e fotografia: os alunos saem com máquinas fotográficas para registrar imagens de seu interesse. Quando retornam à sala de aula, identificam com caneta as formas geométricas nas imagens que trouxeram. "Muitos deles passam todos os dias na frente do correio, mas não se dão conta de que há uma janela, e que ela é retangular", afirma a coordenadora. Todo material didático usado é produzido pelos próprios professores. A partir de um programa, eles elaboram aula por aula. "Estamos num processo de sistematização desses planejamentos. Há professores que chegam com menos experiência e que precisam de material, para que ganhem autonomia", afirma.

Leitura
Josnaldo Freire de Sales é ajudante de pedreiro e aluno das turmas de EJA do colégio Santa Maria, localizado na zona sul de São Paulo. No final de julho, quando as aulas do segundo semestre começaram, Josnaldo produziu uma paródia da "Canção da América", de Milton Nascimento, para a disciplina de língua portuguesa. Ele escreveu: "Amigo hoje é minha inspiração/Me lembrei de você/Em uma roda de samba/Não vou te esquecer". Ali, no Santa Maria, todo conteúdo é desenvolvido a partir da leitura e da interpretação de textos. "Cada professor, com a sua disciplina, trabalha com interpretação de textos. Assim, o aluno desenvolve habilidades de comparar, de justificar, de ordenar e de estabelecer relações", explica Elias Esaú, diretor de EJA.

A escola atende aproximadamente 700 alunos em regime semigratuito. Para quem frequenta as turmas que equivalem ao primeiro ciclo do ensino fundamental, não há custo. No segundo ciclo, há custo - segundo Esaú, a escola oferece bolsas para quem não tem condições financeiras e acaba pagando por 95% das mensalidades dos alunos dessa etapa.

O curso no Santa Maria é semestral (cada semestre equivale a um ano letivo regular), abrange o ensino fundamental e o ensino médio e coloca a frequência como obrigatória. Atualmente, a maior parte dos alunos é do sexo feminino. Quando a escola criou o curso, em 1978, o total de homens era bem maior que o de mulheres. Isso porque havia um grande parque industrial na região, com fábricas que exigiam a escolarização de seus funcionários. Hoje, o bairro é predominantemente residencial. Assim, muitas alunas são manicures, diaristas e vendedoras.

Um dos grandes problemas identificados por Esaú em suas turmas de EJA é a defasagem entre o que o aluno diz ter aprendido e o que ele realmente aprendeu. Um adulto que estudou até o 1º ano do ensino médio nem sempre sabe ler e escrever. Nesses casos, a escola oferece reforço para aqueles que chegam sem condições de acompanhar as aulas.
"O problema é: como você explica para um adulto que fez escola pública que ele não aprendeu nada?", questiona. Outra dificuldade é a diferença entre as tarefas executadas pelos estudantes no trabalho e na escola. O trabalho intelectual exigido na sala de aula quase sempre não é encontrado no cotidiano do aluno. "Foi o caso de dois irmãos pedreiros que trabalhavam o dia inteiro com picareta e, quando chegavam aqui, tinham de pegar um lápis. Eles não conseguiam nem fazer o movimento com o lápis", relata.

Em 1981, Esaú e sua equipe fizeram um levantamento sobre o número de alunos que chegavam atrasados. Como todos trabalhavam e moravam perto da escola, apenas 6 em 300 não cumpriam o horário. Hoje, os números são outros: 50 alunos de 700 não chegam ao colégio na hora marcada. As justificativas mais comuns são o trânsito, horas extras de trabalho e problemas com a família. Esses relatos também aparecem quando o assunto é desistência do curso. Segundo o diretor, o maior gargalo está na 5ª série, etapa em que 40% dos alunos deixam as aulas. "Se ele não chega no horário, já começa um processo de perda de motivação. Há toda dificuldade de vencer o cansaço para chegar à escola. E a própria dificuldade de acompanhar as aulas", aponta.

Flexibilização
Para driblar todos os percalços que encontra em sala de aula, a professora Acássia Gentile, que leciona física para as turmas de EJA, investe em soluções mais "visuais". Ela cita um exemplo. Para explicar o conceito de velocidade, foi até o jardim da escola e coletou um tatuzinho de jardim. Colocou o animal em cima de uma cartolina, marcou distâncias e fez com que os alunos observassem seu trajeto. "Esse é o eixo do trabalho. É sair do abstrato, ir para o cotidiano dele e levantar a autoestima. Tem de tudo um pouco, inclusive amor", explica.

Para Maria Clara Di Pierro, da Feusp, se a criança pode ser mantida na escola pela obrigatoriedade, o adulto só permanece dentro dela se há o vínculo afetivo com o professor, a flexibilidade da escola em se ajustar às suas necessidades de aprendizagem e a construção da autonomia. Nesse sentido, ela sugere que as diretrizes do Conselho Estadual de Educação para o segundo ciclo do ensino fundamental e para o ensino médio sejam revistas, para que deixem de engessar o modelo pedagógico. Ela se refere às exigências de duração do curso para ambas as etapas (24 meses no primeiro caso e 18 meses no segundo), além da carga horária mínima (1.600 horas e 1.200 horas, respectivamente). "Entendo que há uma preocupação histórica de que a EJA não seja vista como facilitadora na aprovação. Mas, com essas diretrizes, há poucas alternativas para organizar o currículo. As turmas de EJA precisam de diversidade de ofertas que se encaixem em cada perfil de aluno", diz. 




fonte: http://revistaeducacao.uol.com.br/textos.asp?codigo=12997

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