quarta-feira, 16 de junho de 2010

O que (quase) ninguém vê
Pesquisa aponta que os maus tratos entre alunos são recorrentes no cotidiano escolar; vítimas não buscam ajuda após a agressão
Lucie Ferreira

Um levantamento inédito sobre a violência no ambiente escolar brasileiro apontou, em abril deste ano, que 70% dos alunos entrevistados já haviam presenciado, pelo menos uma vez, maus tratos a colegas na sala de aula. Aqueles que informaram ter visto colegas serem maltratados várias vezes por semana somam quase 9%, enquanto 10% viram atos violentos todos os dias. Mais: das cinco regiões do país, a Sudeste é a que apresenta maior frequência de maus tratos entre colegas, seguida por Centro-Oeste e Sul. Realizada pela ONG Plan Brasil, a pesquisa Bullying escolar no Brasil foi realizada entre os meses de outubro e dezembro de 2009 e envolveu 5.168 estudantes de 5as, 6as, 7as e 8as séries de 25 escolas públicas e particulares nas cinco regiões do país, além de professores, funcionários, diretores e coordenadores de escolas e pais de alunos. Os resultados da pesquisa servirão de subsídio para a campanha Aprender sem Medo, ação global que pretende erradicar a violência nas escolas. "A campanha teve início em 2008 e no Brasil escolheu esse tema por ele ser pouco estudado e difundido em nossas escolas", explica a consultora da Plan, Cleo Fante.

O bullying, termo inglês que significa intimidação, compreende atitudes agressivas de todas as formas, praticadas de maneira intencional e repetitiva. Executadas em uma relação desigual de poder, ocorrem sem motivação aparente, causando dor e angústia na vítima. Embora tenha se tornado bastante recorrente na mídia a partir da década de 1990, o bullying não é um fenômeno novo. Na literatura, o escritor austríaco Robert Musil narrou esse tipo de maus tratos em O Jovem Törless, publicado em 1906. A vítima era Basini, aluno de um colégio interno flagrado ao roubar outro colega. Como forma de repreensão, dois estudantes decidem aplicar-lhe castigos humilhantes.

"O bullying sempre existiu, mas era tratado como uma forma de violência sem características próprias", comenta a professora Luciene Tognetta, do Departamento de Psicologia Educacional da Faculdade de Educação (FE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "O olhar da ciência se volta às peculiaridades do bullying que o tornam mais sério do que outras formas de violência: é repetido e a vítima tem força para suportá-lo", completa. Segundo Cleo Fante, a gravidade do bullying e seu prejuízo eram considerados brincadeiras próprias da fase do amadurecimento do indivíduo. Essa interpretação foi desmistificada por estudos desenvolvidos pela Universidade de Bergen, na Noruega, durante a década de 80, que alertavam sobre a existência de um fenômeno velho e novo. O material também apontava que o bullying exigiria a atenção e a preocupação não só dos profissionais das escolas, mas dos pais e da sociedade como um todo.


A escola e o bullying

De acordo com a pesquisa, quando docentes e gestores foram questionados sobre as possíveis causas de bullying no ambiente escolar, transferiram para as famílias o dever de evitar esses episódios na escola, e vice-versa. Entretanto, muitos pais assumiram uma parcela da culpa ao perceber que famílias negligentes também são uma das causas dos maus tratos, pois é por meio da agressividade que a criança busca a atenção de adultos e colegas. Luciene Tognetta acredita que a escola precisa de um espaço para a discussão do tema em vez de recorrer a ações paliativas, como a suspensão do agressor. "É responsabilidade da instituição prevenir e tratar o bullying, auxiliando o professor a identificar o problema para que ele ajude vítimas e agressores a compreender as regras", opina.

Regina de Andrade, que leciona língua portuguesa em uma escola estadual da zona leste de São Paulo, concorda. "O professor tem de agir como professor, e não apenas passar a matéria e ensinar. A maioria não quer se envolver", diz. Ela também reconhece que a falta de autoridade na escola - apontada por pais durante a pesquisa - resulta em excesso de liberdade e permite a impunidade dos agressores, estimulando a repetição da violência. "Depois de muita insistência dos professores, o coordenador chama o aluno. Se continuar, os pais são convocados", conta.

O que mais chama a atenção dos pesquisadores é o local de maior incidência dos ataques. Segundo as vítimas entrevistadas pelo estudo, no Brasil o local mais usado é a sala de aula, com ou sem o professor, seguido do pátio. Em outros países a preferência é pelo pátio e locais de menor visibilidade, como banheiros e corredores. "Esse indicador alerta para a dificuldade do adulto em identificar o bullying como também para a forma de organização da própria escola e de sua equipe, que necessita de treinamentos específicos para identificar, intervir e prevenir o fenômeno", destaca Cleo.


Perfil das vítimas

Para a maioria dos alunos entrevistados (16,84%), a principal motivação do agressor para maltratar um colega é querer ser popular. No entanto, muitos não souberam comentar o porquê desse tipo de violência nas escolas (11,59%). Algumas situações de agressão surgem da dificuldade em estabelecer limites para as brincadeiras, muitas vezes sem que os próprios envolvidos percebam a gravidade da situação. A manifestação mais frequente de maus tratos entre alunos, conforme o estudo, é a agressão verbal por apelidos e xingamentos, sendo vários deles gratuitos e, geralmente, relacionados à aparência (altura, sobrepeso, padrões de beleza, cor da pele, uso de óculos ou aparelhos dentários) ou às necessidades especiais.

Regina de Andrade corrobora os dados da pesquisa no dia a dia. Em sua escola, as vítimas de bullying costumam ser garotos e garotas com característica físicas como sobrepeso, altura elevada, cabelos crespos e cor da pele. Além disso, estudiosos e introspectivos, estereotipados como nerds, também sofrem com os agressores.

A maioria das vítimas do bullying declarou nada fazer após os maus tratos. Eles se sentem magoados (6,6%), comportamento que pode levar à repetição da violência, já que preserva os agressores. Porém, muitas vítimas procuram se defender sozinhas (6,3%). Menos de 10% dos alunos entrevistados buscam ajuda dentro da escola, seja falando com o diretor ou com um professor.

Quanto aos sexos, meninos e meninas são afetados de modo diferente por esse tipo de violência. O que os meninos expressam sentir após serem maltratados revela que talvez eles estejam querendo mascarar seus sentimentos para não demonstrar fraqueza. Dizem "achar engraçado", "não sentir nada" e que "se sentem bem". As meninas admitiram ter se sentido magoadas, chateadas, tristes e até com medo. "É possível inferir que isso decorre da dificuldade dos meninos em assumir emoções ligadas ao sofrimento causado pela situação, tendendo a mostrar-se indiferentes ou pouco impactados pelas ações agressivas", afirma o relatório. As formas de bullying também variam de acordo com o sexo, como observa Luciene Tognetta, da Unicamp: ao praticá-lo, as meninas são mais sutis, abandonando colegas, formando "panelinhas" e diminuindo o outro moralmente. Os meninos usam a força física e a imposição. 

Regina de Andrade relata o caso de um garoto autista do 2º ano do ensino médio, que  servia de meio para uma aluna provocar outro colega da mesma sala: ela pedia para ele fazer as "brincadeiras" com o outro aluno, pois assim a culpa não seria dela. "Os alunos acabavam ensinando o que era errado para ele", conta. A atitude mais comum nas escolas em geral é a convocação do responsável, que só acontece quando a situação se agrava. "A maioria dos pais defende o filho e não acredita no professor", diz, relembrando o caso do aluno que colocou laxante em uma garrafa de refrigerante e deixou em cima da carteira para os colegas. Quem se aproximasse e pedisse para beber, ele deixava. Ao ser chamado pela coordenadora e informado do que o filho havia feito, o pai simplesmente riu.




fonte: http://revistaeducacao.uol.com.br/textos.asp?codigo=12916 no dia 16.06.10

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